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Senzala moderna: o problema do trabalho escravo no Brasil


Por Douglas Pinheiro Bezerra*

Na semana passada – dia 23, para ser mais preciso – o Supremo Tribunal Federal, última instância do Poder Judiciário, tomou uma decisão irremediavelmente emblemática: aceitar denúncia contra um senador da República pela suposta prática de crime de redução de trabalhadores a condição análoga à de escravos. Isso significa, em letras simples, que o senador João Ribeiro, filiado ao PR/TO, sentará no banco dos réus para responder as acusações que lhes são feitas, podendo, em tese, ser condenado à pena de dois a oito anos de prisão, além do pagamento de multa, por manter empregados, em uma de suas fazendas, sob péssimas condições de trabalho e higiene, cumprindo exaustivas jornadas laborais e retendo seus miseráveis salários.

A realidade do trabalho escravo (ou “análogo a escravo”, conforme se queira chamar) parece, finalmente, estar ocupando os espaços institucionais necessários, embora seu enfrentamento político deva envolver forças e atores sociais que não se restringem ao policiamento e aplicação de penalidades por parte dos órgãos competentes. Na verdade, combater a escravidão, que é uma lógica secular de (sobre)exploração com vias enriquecimento imoral do “senhor”, hoje patrão, constitui-se em tarefa de toda a sociedade, isso porque os processos produtivos nos quais estes sofridos trabalhadores estão envolvidos afetam até mesmo os mais longínquos e impensáveis sujeitos.

Esclarecendo melhor: o escravo do século XXI está nas fazendas, na construção civil, no setor de alimentação, na fabricação de vestuários e calçados e em qualquer outro espaço produtivo que se aproveite de contextos históricos de subdesenvolvimento e de dependência econômica para explorar mão de obra de maneira indignificante e à margem da legislação trabalhista. É assim que o tênis importado, o sanduíche do fast-food, a roupa de grife ou, até mesmo, o feijão e a soja que vêm parar na nossa mesa, fazem dos “não escravos” componentes essenciais (e estruturais) de tal realidade. O fato de se libertarem trabalhadores em regime de escravidão nos confins do Pará ou em plena Avenida Paulista, como se deu muito recentemente, é mais uma prova de que tais práticas são sobremaneira convenientes e usuais.

Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), entre 2005 e 2011, cerca de trinta mil(!) trabalhadores foram libertados da condição de escravidão, o que levou a “lista suja” do órgão a alcançar o vergonhoso recorde de 294 pessoas físicas e jurídicas elencadas como graves violadoras de normas trabalhistas: estas são impedidas de receber financiamento bancário ou participar de processos de licitação, além, por óbvio, de terem que indenizar seus empregados e pagar pesadas multas. Ainda, de acordo com o relatório intitulado “Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil”, lançado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e relativo às fiscalizações realizadas pelo MTE em quatro estados, é possível traçar um perfil do trabalhador rural sujeito à escravidão: negro, pobre, com até 30 anos de idade, migrante do Nordeste brasileiro. Os empregadores, por outro lado, são ricos, brancos, com formação educacional que alcança o ensino superior.

É preciso entender que a ideia de “escravidão” não visita apenas a restrição física, o aprisionamento espacial do trabalhador ao seu local de trabalho, mas, também, outras circunstâncias que fazem do seu contexto existencial uma verdadeira “senzala” da qual a fuga parece ser inalcançável. Onde está a “liberdade” do trabalhador escravo, miserável, que precisa encontrar condições de sobrevivência-própria e da sua família? A liberdade de sair de um ambiente de escravidão para adentrar em outro? A liberdade de ter que se submeter a condições inimagináveis de exploração para recolher as migalhas mais sujas e insignificantes do lucro do seu empregador, sob pena de sofrer coação moral ou, até mesmo, física?

Defender que não há mais lugar histórico para sustentar a existência de trabalho escravo no Brasil, valorando-o como mera “irregularidade das normas trabalhistas”, e, portanto, relativamente reprovável, é um absurdo equívoco e, contraditoriamente, uma negação histórica: significa ignorar as bases de construção do subdesenvolvimento aqui vigente, que perpassa a submissão dos pobres, a permanência de relações de dominação tradicional (o senhor de terras que também é senador da República, por exemplo) e a desmobilização da organização classista através dos mais diversos artifícios, incluída a violência.

Apesar dos significativos avanços no combate à escravidão moderna, é preciso superar os obstáculos políticos e jurídicos mais imediatos, a exemplo das coalizões partidárias conservadoras, que apostam na parcimônia e cumplicidade do restante da sociedade; e dos manejos legais para não reconhecer determinadas táticas de exploração como “escravocratas”. As mazelas da escravidão não devem ser abandonadas no passado, com a Lei Áurea. Em outro sentido, pedem para ser enfrentadas aqui, agora, com a sua devida ressignificação histórica.

*Estudante de Direito da UFPB.

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