OS MANIFESTANTES DE HONG KONG E SUAS BANDEIRAS RETRÓGRADAS



 
Autor: Ian Goodrum – 14/08/2019

Tradução: Equipe A Margem



 Imagem - Fonte:  https://www.dailymail.co.uk/news/article-5226263/After-tough-year-Hong-Kong-democracy-protesters-sound-warning-China-New-Years-day.html

          Ultimamente tem havido muita controvérsia sobre bandeiras.

         Não é surpresa – afinal, elas foram feitas para ser símbolos. Mas o recente comportamento dos manifestantes de Hong Kong mostra uma flagrante confusão sobre o passado da cidade. Muitos deles vêm tremulando a bandeira colonial usada no território antes de seu retorno à China em 1997, e alguns foram além: exibiram a atual bandeira do Reino Unido ou a dos EUA para expor suas aspirações por um governo ocidentalizado ou mesmo uma intervenção de algum desses países.

        Enquanto isso, a bandeira da República Popular da China e seu emblema nacional vêm sendo violados em uma série de ataques em paralelo à escalada de violência na cidade. Militantes vêm demonstrando sua insatisfação com uma emenda sobre extradição a partir da vandalização desses objetos, inflamando tensões em uma cidade que já está atingindo seu ponto de ebulição. Quem se importa se a emenda foi suspensa semanas atrás? Quem precisa de coerência quando se há coisas para destruir? Essa não é apenas uma abordagem destrutiva e contra producente para promover mudanças – é uma atitude inacreditável para quem conhece a história dessas nações.

       Caso haja alguma confusão sobre isso, posso prover alguns lembretes rápidos.

     Após assassinar centenas nas Guerras do Ópio, a Grã-Bretanha inundou o país com a droga, causando outras incontáveis mortes. O comércio hediondo gerou uma insanidade crescente enquanto vários países tomavam os recursos da China e deixavam uma população dócil e dependente do vício no ópio. Tratados desiguais ratificados em sequência por imperialistas maliciosos usurparam pedaços do território chinês para uso estrangeiro.

      Somente com o Partido Comunista da China e sua ascensão ao poder em 1949 que o País voltou a se recuperar desse trauma nacional; programas de reabilitação e uma intensa propaganda anti-ópio varreram os últimos vestígios do narcoimperialismo ocidental.

      Varreram todos os lugares, menos Hong Kong. Na maior parte de seu período como possessão britânica os chineses eram tratados, no máximo, como cidadãos de segunda classe. Uma classe elitista de administradores coloniais expandiu seus privilégios e riquezas sobre seus súditos, denegando-se quaisquer posições aos chineses, exceto os empregos subalternos. O inglês foi a única língua oficial até 1974 e o açoite continuou como meio de punição criminal até 1989. Uma linguagem jurídica contra a discriminação racial não foi adotada até 1991 – e não foi efetivada até o fim do período colonial. Os britânicos organizaram o que só pode ser descrito como um estado de aparthaid até o último momento possível.

      Embora já tenham se passado duas décadas desde o retorno de Hong Kong à China, as cicatrizes desse período permanecem, assim como na América do Sul, África e outras partes da Ásia – lembranças permanentes do período colonial. Feridas profundas não desaparecem do nada e há uma razão para aqueles que acenam e dizem que devem ser esquecidas: são amplamente beneficiários desse legado – ou, ainda mais estranho, são descendentes destes.

    A exploração desse período anterior foi o combustível para a industrialização e permitiu ao Ocidente se desenvolver e crescer ao ponto em que, mesmo em uma era “pós-colonial”, permanecem sendo as mais avançadas economias conhecidas pelo homem. Persiste sua concentração de riqueza e poder, bem como as estruturas que construíram à sua imagem – mesmo depois da renúncia do controle direito. Sem uma mudança completa e sistêmica essas relações desiguais continuarão seu alegre percurso.

     Tudo isso está no contexto da presente situação. No período tardio de sua ocupação colonial, a Grã-Bretanha mudou suas táticas, optando mais pelo afago do que o chicote. Embora tenha usado uma abordagem mais suave na administração após a II Guerra Mundial – e isso teve limites; volte e veja – a Grã-Bretanha nunca foi longe o suficiente ao ponto de arriscar perder sua posição. De fato, nos momentos decisivos o chicote voltou à mão; o descontentamento nos anos 1950 e 1960 foi sufocado em um nível que os atuais manifestantes sequer imaginam.

      A polícia, afinal, não fez nada para impedir o saque e desfiguração do Conselho Legislativo com uma bandeira colonial no mês passado – compare esse tratamento com as centenas de mortos em protestos na época do controle britânico. E mais, mesmo melhorias limitadas na governança foram feitas cinicamente como forma de pacificar a população rebelde. Reformas “democráticas” nunca foram seriamente promovidas até o início das negociações entre Grã-Bretanha e China para restauração da soberania chinesa. De fato, é só juntar 2 + 2 e perceber que isso não foi mera coincidência.

   Mas para alguns, essa estratégia funcionou. Com algumas concessões simbólicas – nenhuma comparável com os direitos que a população agora usufrui – alguns segmentos se inclinaram à ideia de viver como sujeitos colonizados. Isso levou a uma espécie de síndrome de Estocolmo onde, apesar de serem invasores, os britânicos começaram a ser vistos de forma mais positiva com o passar do tempo. Soberania e autodeterminação foram sacrificadas no altar da imersão em um sistema notavelmente desigual, onde a divisão de classes cresce cada vez mais.

    Nostálgicos agora culpam a administração pós-colonial pelas desigualdades de longa data com raízes profundas no período colonial, e essa culpabilização equivocada é ampliada por maus atores com interesses particulares.

     Essas contradições não serão resolvidas enquanto forças externas continuarem a tentar interferir, e certamente não haverá nenhum progresso se o passado da cidade continuar sendo visto por essas lentes cor-de-rosa.

     Desejar a volta de um período de violência e discriminação – não importa o quão suave as coisas ficaram logo antes do retorno de Hong Kong à China – é cair na armadilha daqueles que querem ver a China despedaçada. Reabilitar os crimes de potências coloniais – sem falar do hasteamento de suas bandeiras – demonstra uma profunda ignorância da história. Imagine por um momento o que as pessoas mortas em guerras anticoloniais no mundo pensariam se vissem esse abraço vigoroso em seus algozes. 

     É aqui que o contraste entre as bandeiras deve ser enfatizado. O culto cego de qualquer símbolo nacional é perigoso, mas a bandeira chinesa representa princípios bem diferentes dos britânicos ou americanos. A bandeira da República Popular da China representa a libertação e o fim da exploração e só foi hasteada anos após derramamentos de sangue e lutas revolucionárias. Esse sucesso foi o culminar de um século de resistência ao imperialismo, feudalismo e colonialismo. Inúmeras vidas foram perdidas na busca desse nobre objetivo, e esses mártires estão vivos no tecido vermelho da bandeira, bem como muitos outros que se opuseram à opressão mundo afora. O povo chinês é bem consciente disso e trata sua bandeira com cuidado e respeito.

     Mas isso não deve ser confundido com o jingoísmo** insensível das “antigas” potências coloniais. A vitória na guerra de libertação e a impiedosa conquista imperial são polos opostos. A primeiro deve ser uma fonte de força e motivação em meio à adversidade, a segunda deve ser encarada com a mais profunda vergonha. Eu mesmo me recordo de minha infância no Texas, onde a bandeira dos EUA foi invocada para justificar ações unilaterais contra inúmeros países e o massacre de milhões. As estrelas e listras são usadas como um chicote contra minorias até hoje, e a postura do “ame-o ou deixe-o” é estendida contra qualquer crítica aos recordes do País em intolerância e genocídio.

     Agora meu estômago embrulha quando vejo a bandeira dos EUA flamulando ao lado de gritos pela “liberação” de Hong Kong. Eles querem a “liberação” alcançada no Iraque, Afeganistão, Líbia, Honduras e Haiti? Não consigo imaginar como o povo chinês deve estar se sentindo vendo isso apenas alguns anos depois do postergado regresso da cidade.

     Bandeiras não são criadas iguais. Há um motivo para a bandeira da Alemanha nazista ser hasteada pelos mais odiosos do mundo; esse símbolo foi, de forma justa, rejeitado. No entanto, uma bandeira igualmente nociva foi hasteada por manifestantes míopes – não esqueçamos dos milhões de indianos mortos em Bengal pela fome sob o domínio britânico – e ninguém move um dedo.

    Sem um verdadeiro ajuste de contas com o passado, esse tipo de espetáculo da ignorância está fadado a se repetir. Não posso ser o único a querer que esse ciclo triste e sórdido acabe de uma vez por todas.

*Ian Goodrum é um escritor e editor digital da China Daily em Pequim, China.

**: Jingoísmo é um termo cunhado para se referir à política externa expansionista e agressiva da Grã-Bretanha no século XIX (Nota da tradução).


Link original em inglês: https://www.peoplesworld.org/article/hong-kong-protesters-have-their-flags-backward/

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