Editorial

| Edição nº 3 | Novembro/Dezembro de 2011 |


Por baixo da toga do senhor juiz


Há um fato muito curioso que observo se repetir na vida de muitos dos/as meus/minhas colegas estudantes do curso de Direito: a admiração (quase fetichizada) em torno da figura do julgador, do meritíssimo senhor juiz. Mas a “culpa” não é só dos futuros bacharéis. Não passam despercebidas as manifestações de muitos familiares e amigos no sentido de desejar que aquele que estuda Direito assuma, algum dia, o cargo de magistrado e que, com isso, passe a despachar, realizar audiências, proferir sentenças e perceber um bom salário. Sem desconsiderar as motivações de natureza diversa, não posso desassociar essa realidade de uma pretensão mais ou menos explícita de empoderamento: sim, porque ser um julgador é, acima de tudo, reconhecer-se (e ser reconhecido) como alguém que dá significado a um significante chamado “texto legal”, cuja atividade, por consequência, repercutirá para além da realidade daquele que veste a toga, representação esta quase sempre acompanhada do discurso da grandeza intelectual e idoneidade de quem decide.

Os acontecimentos recentemente testemunhados pela sociedade brasileira no que diz respeito às limitações (ainda que provisórias) dos poderes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para investigar e punir magistrados induziram o ponto de ebulição de um debate há tempos adiado: como democratizar um poder que não se permite ver democratizado? A convivência da retórica democrático-constitucionalista, promovida pelo próprio Judiciário, com uma estrutura fechada ao controle social e às mínimas exigências de transparência administrativa nos revela uma contradição que deve ser devidamente explorada e, preferencialmente, superada. O Poder Judiciário agrega, na sua vastidão de varas, tribunais, serviços notariais e servidores, as relações patrimonialistas e de pessoalidade típicas da gênese tradicionalista da sociedade brasileira, o que faz repercutir na lisura das ações de controle empreendidas por ele mesmo.

Apostar na competência administrativa subsidiária do CNJ significa idealizar e sobrestimar a atuação das corregedorias locais, como se o corporativismo e a “cordialidade” entre magistrados (usando um conceito sociológico de Sérgio Buarque de Holanda) correspondessem a dados excepcionalíssimos. Longe de promover deduções generalizantes, é preciso atentar para as relações estruturais de poder que se estabelecem em diversas localidades do país, onde laços tradicionais de dominação são muito evidentes e sugerem a proximidade tanto entre juízes quanto entre estes e representantes dos outros dois Poderes. A Paraíba, onde famílias mandam e desmandam há décadas (no Executivo, Legislativo e Judiciário), é um bom exemplo disso, não? Desta forma, não é preciso fazer grandes esforços para concluir que procedimentos correcionais conduzidos pelo CNJ têm chances muito mais evidentes de encontrar algum desfecho satisfatório do que aqueles levados a cabo pelas corregedorias dos Tribunais.

O Poder Judiciário precisa, no fim das contas, ser disputado pela sociedade. É preciso compreender que os esforços no sentido de dar-lhe mais transparência e celeridade são louváveis, mas insuficientes. A maior parte dos juízes, desembargadores e ministros de Tribunais Superiores do país sintetiza um rosto elitista, conservador e de dificultoso acesso, valendo-se da retórica da sacra “imparcialidade” para legitimar interesses fortemente ideológicos (entre eles, o de que a administração da justiça deve se limitar a um grupo de intelectuais sectaristas, o que me parece, no fim das contas, uma questão de classe). Lutar pela democratização do Judiciário significa mostrar que o pobre quer a mesma justiça que o rico; que a criminalização dos movimentos sociais e de seus integrantes é uma incoerência frente às promessas do dito estado democrático de direito; que a justiça não se exaure em pretensões de legalidade; que a eficácia dos direitos socais não pode ser só um blá-blá-blá positivista.

A partir dessas reflexões (e de suas consequentes ações, num jogo dialético), talvez comecemos a engatinhar em direção à sonhada “revolução democrática da justiça”: uma realidade em que o poder da toga não se justifica por si mesmo, mas pela compreensão, por parte do sujeito que a veste, de que o Poder Judiciário pode ser um real construtor da democracia, mesmo abrindo mão de toda mitologia jurídica que intenta legitimá-lo, por ora.


Por Douglas Pinheiro Bezerra
Editor-geral



| Edição nº 1 | Maio/Junho de 2011 |

Têmis, “cega”, foi mais sensível do que o legislador




Segundo o último Censo Demográfico, realizado no ano de 2010, o Brasil possui cerca de 60 mil casais constituídos por pessoas do mesmo sexo, uniões declaradamente homossexuais. A região Nordeste registra pouco mais de 12 mil relacionamentos dessa natureza, sendo superada apenas pelo Sudeste: os seguidores irredutíveis de Virgulino Ferreira da Silva que me perdoem, mas parece que a nossa terra do “cabra macho” está ganhando novas cores e identidade. Diante disso, há quem diga que a emergência das relações homoafetivas é um “sinal do fim dos tempos” ou do desvirtuamento moral da humanidade; este humilde editor prefere acreditar que, ao contrário, estamos diante de uma significativa reviravolta histórica, “tempos” estes capazes provocar debates acerca de dimensões antiquadas e hegemônicas de moralidade.


A visibilidade que hoje existe acerca da figura do homossexual e das dinâmicas sociais nas quais o mesmo se insere é consequência de processos políticos de evidenciamento da própria sexualidade, que podem ser resgatados a partir da emergência de movimentos feministas, dos debates intelectuais acerca da construção da identidade sexual (nas suas conotações sociológicas, psicológicas, filosóficas e jurídicas), da recepção da ideia de “sexo” como tema de saúde pública, para citar apenas alguns suportes históricos. Por trás dessas movimentações há sujeitos munidos do imperativo de autoreconhecimento, o que constitui uma afronta à cultura quase imperceptível (e pouco questionada) da construção de identidade-própria no espelhamento da identidade do outro. Nesse sentido, os homossexuais são subjetividades emergentes, contra-hegemônicos e, numa significação específica, antinormativos, pois resistem a uma pretensa moralidade obscurantista e disciplinadora.

A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no último dia 5 de maio, reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo e seus efeitos jurídicos, foi uma inegável vitória da comunidade gay, embora esteja longe de quebrar paradigmas de ortodoxia religiosa e capilarizar o combate à discriminação sexual. Sobram discursos de “falta de legitimidade”, “judicialização da política” e de “usurpação de competências por parte do Judiciário”, mas uma conclusão é muito evidente: a insistência de setores conservadores em tentar sufocar debates políticos cruciais, inserindo-os num dinamismo institucional que parece não ter mais um lugar histórico tão bem definido. Em outras palavras: ao tempo em que se discutem fenômenos como a constitucionalização das relações sociais, a leitura sistemática e póspositivista da Constituição, a abertura do Direito aos fatos e a função jurisdicional, constitucionalmente legitimada, de proteção das minorias representativas, há quem defenda que somente ao legislador cabe o reconhecimento de direitos e que a transformação das fronteiras institucionais é, categoricamente, uma anomalia nociva à democracia.

Desde 1995 tramita um projeto de lei na Câmara dos Deputados relativo às uniões homoafetivas. Em apenas dois dias, os ministros do STF (até os mais conservadores) deram uma resposta significativa à questão, não obstante a existência de diversos posicionamentos judiciais e administrativos, Brasil adentro, no mesmo sentido. Juntamo-nos a mais quatro países latino-americanos (Argentina, Colômbia, México e Uruguai) – onde a maior parte da população é cristã – que afastaram o estigma do “invisível jurídico” da realidade de sujeitos socialmente visíveis. Isso nos deixa uma lição valiosa: a ideia de “moralidade democrática” não deve ser construída sobre as bases ideológicas de um grupo majoritário que concorre para a promoção incondicional da censura de comportamentos e apropriação de subjetividades; em outro sentido, uma democracia moralizada é aquela que garanta instrumentos de isonomia e defesa de minorias, dando um conteúdo real às pretensões de liberdade e igualdade (para construir e dar visibilidade ao “eu” diante do “nós”), por mais idealista que esse pretensão possa parecer. Com discriminação, intolerância e marginalização não há democracia efetiva, veta-se o empoderamento substancial dos sujeitos, reduzindo a dinâmica política aos termos de “um governo de todos destinado a alguns” – e essa lógica, parece óbvio, não se aplica apenas à realidade existencial dos homossexuais.

Por Douglas Pinheiro Bezerra
Editor-geral

Postagens mais visitadas deste blog

| Especial |

Fanzine 8 de Março

| Direitos Humanos |