Opinião


Auxílio-reclusão: mentiras, verdades e análises possíveis


Por Bárbara Ferreira de Freitas e Nelson Gomes Júnior*

Circula na internet, já há algum tempo, um email tipo corrente promovendo uma falsa campanha de esclarecimento acerca de um benefício previdenciário voltado para dependentes de segurados do INSS. A polêmica gira em torno do chamado “auxílio-reclusão”, benefício perversamente apelidado de “bolsa bandido” pelos autores do spam que vem se multiplicando, reforçando preconceitos e deturpando informações.

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a utilizar o conceito de seguridade social, o qual abrange saúde, assistência e previdência social, sendo esta última de caráter contributivo, ou seja, só é possível obtê-la por meio de pagamentos na forma da lei. A finalidade da previdência é cobrir os riscos sociais comprometidos pela falta de renda do contribuinte ou de sua família, tais como nos casos de doença, acidente, gravidez, prisão, morte e velhice. Conforme previsto nas leis 8.212/91 e 8.213/91, de um total de 10 benefícios possibilitados pela previdência social, 2 são pagos somente ao(s) dependente(s) do segurado: pensão por morte e auxílio reclusão, sendo este último fonte de muitos equívocos quanto à sua natureza, objetivos, beneficiários e valores pagos.

O auxílio-reclusão consiste em um benefício de prestação continuada da previdência social, de caráter alimentar, que tem por objetivo possibilitar que os dependentes do presidiário tenham como se manter enquanto ele, antes provedor e segurado, encontrar-se recluso. Tem direito ao benefício todo segurado de baixa renda recolhido à prisão, durante o período em que estiver preso sob regime fechado ou semi-aberto. Atualmente, só tem direito ao auxílio o segurado que, à época da prisão, percebia renda mensal igual ou inferior a R$ 862,60 e, desde que, quando da solicitação do benefício, não esteja recebendo salário da empresa na qual trabalhava, nem em gozo de auxílio-doença ou aposentadoria. Diferentemente do valor alardeado no falso email, o auxílio varia de R$ 545,00 a R$ 862,60 por família, seja qual for o número de dependentes do segurado.

Faz jus ao benefício apenas a família do presidiário que tiver qualidade de segurado no momento da reclusão, sendo potenciais titulares do auxílio sua esposa(o)/companheira(o), filhos(as), irmãos(as) e/ou pais. Caso o segurado possua dois ou mais dependentes, o auxílio será dividido igualmente entre os seus beneficiários.  Em caso de morte do preso durante o período de pagamento do auxílio-reclusão, o benefício se converte em pensão por morte.

Em oposição ao boato eletrônico que insinua que o benefício em tela trata-se de um estímulo ao ato criminoso, o auxílio-reclusão visa cumprir o ditame de justiça social, protegendo a família do segurado da inesperada situação de vulnerabilidade social e econômica oriunda da reclusão do seu provedor. Evita, por consequência, que seus dependentes tornem-se alijados de subsistência e sofram a punição cabível exclusivamente ao praticante do delito. Em última análise, o auxílio tende a garantir a proteção constitucional à família, sem perder de vista a defesa da dignidade da pessoa humana, princípios frequentemente violados no cotidiano dos familiares de presos.

Os discursos caluniosos sobre o auxílio-reclusão cumprem o papel reacionário de manutenção de preconceitos, estereótipos e negação de direitos aos segmentos mais vulneráveis da população. Os pobres, reiteradamente criminalizados pelos mecanismos seletivos de nosso sistema penal, configuram-se novamente como alvo preferido de dispositivos de controle, camuflados agora pela retórica da moralidade e do bom uso do dinheiro público.

É pouco razoável associarmos o auxílio-reclusão ao quadro de motivadores da criminalidade. Grande parte da massa carcerária deste país jamais conheceu a condição de segurado do INSS. Seria ingenuidade de nossa parte acreditar que alguém, estando empregado, escolheria altruisticamente cometer um crime e ser preso para “beneficiar” sua família. De igual maneira, não nos parece justa a perpetuação das “punições” estabelecidas aos familiares do preso, em especial porque não cometeram crime algum.

*Bárbara é estudante do 5º período da graduação em Direito e Nelson é professor do Departamento de Ciências Jurídicas, ambos da UFPB.


Do feminismo de igualdade de direitos à luta feminina por um projeto de sociedade livre

Por Juliana de Andrade Marreiros*

Genitora; responsável pelo lar; esposa; objeto do animalesco desejo sexual e do domínio masculinos; vítima da coisificação e mercantilização de seu corpo, da desqualificação de suas capacidades de agir, pensar e desenvolver-se intelectualmente e da redução de sua constituição aos padrões historicamente construídos como femininos. Esses são apenas alguns dos atributos intrínsecos à mulher nas sociedades patriarcais liberais.

Ainda que o termo patriarcal carregue certo tom de obsolescência em seu uso, continua sendo sob seu império que a contemporaneidade se processa. As condições de submissão feminina só estão maquiadas, como é próprio do sistema capitalista de produção e de vida. Surge aqui a intersecção entre as duas grandes configurações políticas, culturais e sociais responsáveis pelas enfáticas agressões à mulher e opressões de gênero: capitalismo e machismo. Forçoso ressaltar que, para além da compreensão de quem aparece primeiro na ordem de catástrofe, ambos são lados de uma mesma moeda para a mulher que sofre diariamente tais opressões, sinônimos de abuso e exploração, e convergentes entre si.
Tem-se no capitalismo a ressignificação da violência social contra as mulheres, identificada pelo padrão de beleza posto, pela divisão sexual do trabalho (que estabelece cruelmente atividades e territórios peculiares à “natureza feminina”), pelo senso comum amplamente corroborado de mitificação do comportamento feminino na sociedade de consumo e de moral machista, chegando a culminar na violência sexual e no alarmante número de vidas femininas ceifadas. Entretanto, ainda que pouco abordada nos debates e nas pautas dos movimentos feministas urbanos e/ou acadêmicos, a violência estrutural capitalista contra a mulher (acirrada pelo machismo) é uma realidade gritante.
Não se pode negar que os efeitos machistas alcançam mulheres de todas as classes. Todavia, a lógica de fomento às desigualdades sociais inerente ao sistema capitalista tem como verdadeiros pressupostos de existência as práticas e políticas de criminalização da pobreza e de desumanização das camadas populares. Nesse cerne, a mulher pobre está, fatalmente, mais exposta às opressões, denotando-se, assim, inquestionável complementaridade entre machismo e capitalismo. O ideário neoliberal sustenta a ilusão do aumento recente da empregabilidade feminina como forma de igualdade de oportunidade entre ambos os gêneros. Porém, além da remuneração inferior da força de trabalho das mulheres em relação à masculina quando do desempenho das mesmas funções, a mão de obra feminina tem sua absorção mais concentrada nos serviços informais, degradantes e marginais.
Essa afirmação é facilmente ratificada pelos quadros crescentes de turismo sexual, tráfico de mulheres e pela prostituição muitas vezes precoce, bem como pelo aumento da população carcerária feminina, resultante da atuação intensa de mulheres nos negócios do tráfico de drogas. É que, uma vez mais vulneráveis socialmente, tornam-se fáceis alvos de cooptação no crime organizado. Não obstante todas essas formas de exploração, o acesso à educação e à possibilidade de politização é sistematicamente negado à mulher pobre, pois a ela cabe a obrigação dos cuidados do lar e dos muitos filhos e, no máximo, a complementação do orçamento familiar por meio de atividades informais ou autônomas, de pouca rentabilidade. Entram nessas constatações as empregadas domésticas, raras vezes titulares de direitos trabalhistas ensejados pela regularização da carteira de trabalho, as lavadeiras de roupa, cabeleireiras, manicures entre outras profissões “tipicamente femininas”. Em localidades de extrema pobreza, como a África e a América Latina, a mão de obra feminina ainda é aplicada de forma intensa na agricultura e no extrativismo, se mostrando indispensável fonte de sustento de milhões de famílias, sem prejuízo das obrigações domésticas.
Nessa conjuntura de violações flagrantes às mulheres, especialmente as pobres, há que se fazer o resgate de questões centrais para os debates de gênero atuais. É fundamental compreender para quais rumos os movimentos, organizações e discussões feministas pretendem apontar. Nesse sentido, propõe-se a construção de uma consciência feminista política de que a erradicação do machismo só será possível com a ruptura das estruturas capitalistas vigentes. E mais: é preciso promover a formação de uma consciência feminista de classe, como forma de enfrentamento das opressões machistas acentuadas pela pobreza.

"Tem-se no capitalismo a ressignificação da violência social contra as mulheres, identificada pelo padrão de beleza posto, pela divisão sexual do trabalho (que estabelece cruelmente atividades e territórios peculiares à “natureza feminina”), pelo senso comum amplamente corroborado de mitificação do comportamento feminino na sociedade de consumo e de moral machista, chegando a culminar na violência sexual e no alarmante número de vidas femininas ceifadas"

Partindo da consolidação desta consciência, é possível vislumbrar na militância feminista possibilidades frutíferas de atuação política que tenha por objetivo uma sociedade livre das amarras impostas pelo capital material, cultural e social dominantes. Não se pretende negar a importância irrefutável da luta das mulheres pela igualdade de direitos, tão reivindicada e necessária. Ao contrário, reconhece-se que a oportunização do trabalho devidamente remunerado e regularizado, a implementação de direitos que atendam às necessidades femininas, a instalação de políticas públicas e meios efetivos de viabilização do pleno exercício de suas atividades, tais como as creches que abriguem seus filhos durante a jornada de trabalho fora de casa, entre outros benefícios, são medidas emergenciais para a emancipação feminina e minimização das opressões e da miséria. Contudo, avançar para a supressão das injustiças sofridas pelas mulheres e para o alcance da liberdade plena exige o entendimento de que, nas palavras de Cecília Toledo, a “opressão feminina é desemprego, é prostituição, é degradação, é violência, é morte por aborto sem assistência médica, é tristeza, frustração, dor. Tudo isso tem um nome: capitalismo”.
Acreditar nas mulheres politicamente organizadas e identificadas, conscientes de seu lugar e papel em uma conjuntura de perpétuo aprofundamento das desigualdades e mazelas sociais (tendo em vista que correspondem à maioria expressiva da população, particularmente da pobre), é também acreditar na transformação da realidade social pelas mãos do povo e, a partir de seu protagonismo, construir um projeto de sociedade igualitária e livre, para todos e todas.


*Juliana é graduada em Direito pela Universidade Estadual do Piauí e ex-membro do Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil - CORAJE/UESPI, núcleo de extensão popular em Direito daquela instituição.





Perto demais da Noruega: o terrorismo “branco” e a ideologia

Por Ana Lia Almeida*

Estava à procura de um pretexto que ajudasse a provocar reflexões no meio jurídico sobre a questão da ideologia, quando o mundo todo se pôs em choque com a chacina da Noruega. O choque parece que aumentou ainda mais quando se tomou conhecimento da autoria do crime: em vez do suspeito-padrão, o terrorista islâmico, surge diante do homem branco-ocidental a incômoda imagem de si mesmo, matando pessoas em nome da manutenção da ordem. Olhando de perto, embora indignados, não deveríamos estar tão surpresos. Não é isso que a direita vem fazendo, em todo o planeta, silenciando e matando pessoas que representam qualquer ameaça à ordem? É esse o terrorismo “branco” a que estamos submetidos em todos os cantos do mundo.

Quando espancam homossexuais ou supostos homossexuais no meio da rua; quando agridem a nós, mulheres, das mais diversas formas; quando reprimem nossas manifestações por direitos básicos e ateiam fogo em barracos de sem-terras acampados em luta pela reforma agrária; ora, todas essas formas de violência não têm o mesmo sentido dos atos terroristas do “louco” norueguês? Não é o mesmo desprezo pelo “outro”, o mesmo desejo de banir o “outro” para que a forma “correta” de viver possa continuar reinando em paz? Por que nossas instituições não dão conta de punir estes crimes? Estaremos todos loucos, então? A necessidade de afirmar a loucura desse sujeito é, certamente, a impossibilidade de admitir que muitos pensam como ele, que a origem dos atos que ele cometeu é o terreno da política, e não o da loucura.
O que está por trás destes ataques e das diversas formas de compreender o seu significado é a ideologia. Há quem entenda que ideologia é um conceito ultrapassado, que caiu junto com o muro de Berlim e tudo mais que estava ligado ao universo marxista. Mas o resgate dessa noção é algo que faria bem para entendermos melhor os conflitos de nosso tempo.
Ideologia é um conjunto de idéias que servem para legitimar e justificar a ação política de certos grupos ou classes sociais, algo que pode ser identificado como uma “visão de mundo” ligada a atitudes políticas concretas, sejam elas tendentes à transformação da ordem social ou à sua conservação. É bom deixar claro que existem outras compreensões da ideologia, a propósito, muitas outras. Mas, nessa compreensão que partilhamos com Gramsci e Mészáros, as ideologias podem tanto ser conservadoras como transformadoras, e assim poderíamos afirmar, por exemplo, que o machismo é tão ideológico quanto o feminismo, mas a opção por defender uma posição ou outra não é indiferente, como poderia pensar algum relativista radical. Estamos sempre fazendo opções ideológicas, ainda que não tenhamos consciência plena disto, e, portanto, assim como não é possível estar livre da política, também não é possível escapar da ideologia.
Agora vamos ao direito: como aparecem as ideologias no campo jurídico, e o que tudo isso tem a ver com a tragédia da Noruega?
A ideologia perpassa todos os momentos do direito, desde a sua criação até a sua aplicação, passando pelos discursos científicos compreendidos como teoria do direito. A elaboração das leis, por exemplo, é um momento evidente da presença da ideologia, quando diversos discursos vêm à tona para legitimar determinadas condutas, e não outras, como positivadas pelo Estado. Mas não somente as opções pela legislação positivada são político-ideológicas, o que é por demais óbvio, mas a sua interpretação (seja por magistrados, seja por doutrinadores) e aplicação também.
Esse processo não ocorre de forma “neutra”, como muitos afirmam, simplesmente em nome do “bem comum”, daquilo que é justo para a sociedade. Na verdade, está implicado em compreensões contraditórias do que seja justiça, sendo que essas visões sobre o justo não são produzidas individualmente, e sim coletivamente por grupos e classes sociais. Infelizmente, como vivemos em uma sociedade marcada por profundas desigualdades sociais, os sujeitos que ocupam as funções jurídicas são hegemonicamente comprometidos com as classes dominantes e não atuam de forma a minimizar estas desigualdades, em prol do povo.
Diante destas reflexões, podemos concluir que estamos, enquanto sociedade e universo jurídico, mais próximos do terrorista norueguês do que pensamos. É também em nome da manutenção da ordem que o judiciário e os demais espaços jurídicos reprimem as exigências do povo por direitos e democracia. Mas não devemos nos desanimar, pois depende somente de nós a reversão desse quadro.


*Ana Lia é mestra em Ciências Jurídicas e doutoranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela UFPB.


  


Mídia e alienação: a tragédia de Realengo como mercadoria da Indústria Cultural


Por Nelson Gomes Júnior*


07 de abril de 2011. Um país desperta sacolejado pela já conhecida trilha sonora das vinhetas que antecedem os plantões jornalísticos da TV. Ainda sonolentos, somos informados de que um homem havia invadido uma escola e atirado em diversas crianças. Ao vivo, as chamadas televisivas se multiplicam por diferentes emissoras e ficamos sabendo, naquele mesmo dia, que o autor da barbárie era Wellington Menezes de Oliveira, jovem de 23 anos, reconhecido por funcionários como ex-aluno da escola.  Antes de substituirmos o café da manhã pelo almoço, o mundo já tinha conhecimento do ato suicida do criminoso, após breve confronto com a polícia local.


Desde a fatídica data, temos sido bombardeados com manchetes de jornal, capas de revista, entrevistas com sobreviventes, depoimentos de especialistas em saúde mental, segurança pública e educação. As análises, em sua maioria, percorrem caminhos superficiais, fragmentados e de carnavalização da violência, refletindo fidedignamente o que o escritor francês Guy Debord chamou de “Sociedade do Espetáculo”. Em linhas gerais, o espetáculo moderno consistiria na multiplicação alienada de ícones, imagens e celebridades, em oposição ao pensamento crítico e à leitura contextualizada do mundo. Engolfada na sociedade do espetáculo, a cobertura midiática da chacina de Realengo transformou o sofrimento humano em objeto de consumo e a desgraça em mercadoria, ávidos por serem rapidamente digeridos. 

Os meios de comunicação de massa figuram entre os mais potentes dispositivos de constituição subjetiva, disparando sobre nós, cotidianamente, uma rajada de valores, medos, sonhos, vontades e sentimentos. Do desejo pelo celular da moda ao luto pela tragédia escolar no subúrbio carioca, os “mass-media”, mais do que simples transmissores de informação,  engendram na alma humana modos serializados de ser, agir, perceber, sentir e pensar.

A Indústria Cultural, expressão cunhada em 1947 por Theodor Adorno e Max Horkheimer, caracteriza-se como um projeto político-ideológico de controle e alienação social, capaz de levar-nos a crer que tudo ao nosso redor deve ser transformado em mercadoria e integrado à produção de riqueza. Ancora-se, portanto, em uma economia de valorização do consumo, favorecendo, ao mesmo tempo, a manutenção de ideologias dominantes, a homogeneização da cultura e a destruição da capacidade crítica dos indivíduos.

Cotidianamente somos relegados à condição de consumidores de notícias, cujo sentido é produzido pelos próprios meios de comunicação, dada a ausência de tempo hábil para adequada “digestão” crítica dos acontecimentos. A mídia pensa para e pelos indivíduos, forjando verdades e massificando nossas formas de compreensão do mundo. Nas palavras de Cecília Coimbra, “a mídia nos coloca certas questões e nos faz crer que estas é que são os problemas importantes sobre os quais devemos pensar e nos posicionar” (1997, p. 11).

Nesta complexa trama de produção semiótica, a chacina de Realengo tem sido irresponsavelmente abordada, oferecendo lugar de destaque a discursos que sinalizam para a doença mental como principal gatilho de acionamento do ato criminoso. A associação indiscriminada entre loucura e periculosidade deve ser compreendida como estratégia sorrateira de controle e normatização social, tendo justificado historicamente a exclusão dos loucos do convívio em sociedade, além de toda sorte de terapêuticas incompatíveis com os princípios da dignidade humana.

A esquizofrenia, quadro clínico cujos sintomas clássicos são perturbações do pensamento, delírios e alucinações, conduz os indivíduos a terem dificuldades em discernir a fantasia da realidade. A hipótese do assassino em questão ser diagnosticado como esquizofrênico é bastante plausível, entretanto, a generalização da loucura como antecedente da violência é um equívoco de graves conseqüências. Em outras palavras, a abordagem midiático-psicopatológica, além de criminalizar a loucura, não se mostra capaz de explicar o mar de violência em que estamos mergulhados.

Diversos equipamentos midiáticos têm veiculado o incidente da Escola Municipal Tasso da Silveira como um episódio isolado, completamente desembaraçado das redes de violência em que estamos inseridos. O fenômeno da violência só pode ser compreendido observando-se uma integrada multiplicidade de fatores: psicológicos, sociais, econômicos, históricos e culturais. O drama de Realengo não está desconectado da violência globalizada que extrapola fronteiras, nem tampouco do quadro nacional de (in)segurança pública.

Pouco problematizada pelos meios de comunicação, a escolha de Wellington pelo retorno à antiga escola também é fato significativo. Historicamente, a instituição escolar tem sido palco de uma infinidade de micro e macro-violências, que vão desde as práticas autoritárias impostas pela própria escola aos cada vez mais freqüentes casos de ameaças, tráfico de drogas, confrontos entre gangues, depredação patrimonial e bullying. Este último, reiteradamente privilegiado pela indústria cultural como o grande nexo causal das relações entre vida escolar e comportamento violento.

Problematizar teórica e politicamente os fatos, assim como fomentar debates consistentes acerca da violência, não constitui objetivo da indústria cultural. O tratamento dispensado pela mídia à tragédia de Realengo toca apenas de modo tangencial nos pontos nevrálgicos de real compreensão dos acontecimentos. Na sociedade do espetáculo, a informação precisa ser reluzente e atrativa, ao ponto de ser configurada como um bom produto. Neste caso, a embalagem apresenta supremacia frente ao conteúdo, engrenagem corroborada, ainda, pelo descrédito na capacidade intelectual e crítica dos espectadores/leitores.

Existiriam escapatórias diante do exposto? Seria possível subverter engrenagens tão poderosamente articuladas? Recorremos, aqui, ao imortal Bertold Brecht e seu farol de resistência: “Nada é impossível de mudar / Desconfiai do mais trivial / na aparência singelo. / E examinai, sobretudo, o que parece habitual. / Suplicamos expressamente: / não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, / pois em tempo de desordem sangrenta, / de confusão organizada, / de arbitrariedade consciente, / de humanidade desumanizada, / nada deve parecer natural, / nada deve parecer impossível de mudar.” 

*Nelson é mestre em Psicologia, professor e chefe do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB

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Da manipulação do discurso


Por Ive Fróes*

A relações sociais são processos históricos, uma (re)construção diária que desencadeia em fatos reais, acompanhando esse movimento não uniforme e variável de mudanças e visões de mundo. Tais relações, e seus efeitos, (re)produzem uma determinada ordem de convivência que tem extensões diversas (jurídicas, morais, religiosas, sociais). E não se pode pensar essa ordem, controle, afastada do seu contexto, sob uma cultura de ideias historicamente determinadas.

Pensar o papel da mídia é encarar as disparidades existentes e a submissão ao pensamento neoliberal e mercantil, entender que as grandes empresas e conglomerados de distribuição de informação atuam como porta-vozes ideológicos do capitalismo. Há a reflexão acerca da manipulação das linguagens, principalmente visual, e de como a “indústria cultural” faz sua infiltração e exerce atração a um determinado modo de “ser” e se comportar, mantendo um modelo próprio de exploração.

Existe um “controle internalizado” que desfoca a leitura midiática do sujeito. A mídia exerce tanto o papel de observador como o de difundir padrões conservadores. A subjetividade é corrompida no temor à exposição pública, uma forma mesclada de controle social. Esse medo do julgamento subjetivo dos “outros” e de se sentir inserido na sociedade (a partir da posse/uso de determinadas mercadorias) acaba por manter a ordem de consumo, através de programações de entretenimento e abertura para comerciais e publicidades que idealizam sentimentos e modos de vida que, no fim, reforçam preconceitos, principalmente, aos grupos alternativos.

A mídia deixa à margem movimentos sociais que lutam contra-hegemonicamente, que há anos tentam, com pequenas conquistas, quebrar a ordem do sistema do selvagem capitalismo. Cotidianamente vemos iniciativas das megaempresas de retaliação a esses movimentos, como ao do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no Brasil, pessoas que buscam a reforma agrária no país. Em contrapartida, a maior parte dos parlamentares brasileiros tem a posse das grandes propriedades rurais. Estes, não por acaso, são também donos ou apoiam algum veículo de informação, sejam emissoras de TV, rádios ou jornais; quando não, os três juntos. Vão-se os dedos, ficam-se os coronéis.

Abafa-se o grito popular, em sequência maquia-se com informações tendenciosas, criando, em vez de um grupo que luta por seus direitos, um grupo de transgressores que vão ao encontro aos bons costumes. Apoia-se o preconceito, a pior forma de violência.

O mundo mercantil encontra um aliado nos meios de comunicação quando estes passam a perceber o sujeito como produto. A troca de informação que deveria existir entre mídia e sociedade inexiste, pois grande parte da produção e difusão de imagens, sons e dados fica presa nas mãos de um seleto conjunto de megaempresas, as quais manipulam o senso comum e o próprio governo à (não) regulação das demandas coletivas, sem admitir os aspectos culturais, tradicionais e indenitários da sociedade.

A “diminuída” atenção dada às leis de comunicação e privatizações da década de 80-90 garante a entrada de corporações, a maioria norte-americanas, a abarcar o mercado potencial da América Latina, criando vínculos com já sedimentados grupos regionais e nacionais.

"Constitui diligência do Estado equilibrar as três instâncias dos meios de comunicação – o setor público, o setor privado e o setor da sociedade civil –, equalizando a participação e representatividade, fazendo refletir o cotidiano social, para que haja verdadeiramente democracia"

Com o título de jornalismo neutro e imparcial, e tendo como princípio o de informar a coletividade, sob uma feição, contando apenas uma história, o senso comum acredita no que vê e ouve. Sem dialogar com outras experiências, falta o contraponto. A grande mídia, em forma de corporações, coloca muros nas tentativas de regulamentação estatal. Esse controle ideológico sobrepõe-se às visões contra-hegemônicas, não reconhecendo falas diferentes na construção social. A voz se cala.

Não que haja problemas em existir visões mercadológicas ou liberais do sistema nos meios de comunicação. O problema é a manipulação de tais visões e o monopólio feito a partir disto. Os canais estatais e comunitários não pretendem impor uma visão esquerdista apenas por manter fortes relações com suas ideias, mas equilibrar e tornar mais límpido esse oceano turvo da comunicação, que pouco retrata as realidades regionais.

É atribuído à lei, sem prejudicar as liberdades de imprensa e expressão, o papel de regular as atividades dos meios de comunicação, evitando que essas empresas tomem conta do espaço que deve ser, em primeira instância, público, garantindo um acesso livre aos questionamentos populares e mantendo, ao mesmo tempo, as fronteiras entre ações do governo e privadas. Salienta-se que o uso dos canais pelas empresas é apenas uma concessão de um serviço de caráter público, um contrato. E, também, que os mesmo órgãos de comunicação que são contra as reformas progressistas foram a favor dos golpes militares e das privatizações na América Latina.

Ao contrário do que pregam as grandes oligarquias, a regulamentação nada tem a ver com censura. Trabalha-se com a composição de grades com menos entretenimento descartável e mais programas culturais que revelem a pluralidade de cada país. Deixando de lado as imposições ocultadas com uma única forma de informar. Não favorecendo a promíscua relação entre comunicação e poder econômico.

Constitui diligência do Estado equilibrar as três instâncias dos meios de comunicação – o setor público, o setor privado e o setor da sociedade civil –, equalizando a participação e representatividade, fazendo refletir o cotidiano social, para que haja verdadeiramente democracia.

O sucesso nessa empreitada depende também da disposição dos governos a entender e melhorar as carências sociais específicas de cada região, defendendo a emancipação social, comunicando-se com os direitos humanos e aceitando a diversidade cultural. Educação de base, incentivo à tecnologia e ao ensino crítico, políticas independentes e ampliação dos direitos são apenas o começo da caminhada; abonados por um terreno fértil e ao mesmo tempo repletos de muros com uma base em uma elite conservadora e corporações que visam apenas à lucratividade, criticando a presença do Estado nos processos de integração regional e local. 

*Ive é estudante de Direito da UFPB

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A Calcinha Preta de Beyoncé e o capital

Por Roberto Efrem Filho*

"Através do consumo, sujeitos socialmente
distintos, como o público gay de Beyoncé
e as classes subalternas das periferias
nordestinas, parecem 'integrados'"
Se você desconhece, tal qual acontecia comigo, Beyoncé Giselle Knowles, permita-me apresentar-lhe talvez a mais contundente manifestação da capilaridade internacional da pop culture desta década. Beyoncé, como sua marca a apresenta, já deve ter vendido aproximadamente 30 milhões de álbuns, de CD ou DVD, desde o lançamento de sua carreira solo, em 2003, isto considerando a abissal e estrutural queda nas vendas desses produtos em face das renovadas facilididades de acesso potencializadas pela internet. É Beyoncé vencedora de nada menos do que 16 Grammy Awards, sendo que cinco dos seus singles já alcançaram o primeiro lugar na Billboard Hot 100, coisa que se você não sabe do que se trata, não se preocupe, eu também não sei. Além de cantora e dançarina, Beyoncé é atriz, tendo atuado em sete produções cinematográficas e sido indicada, inclusive, ao Globo de Ouro, por seu trabalho no longa Dreamgirls. A revista Forbes elegeu Beyoncé, no ano de 2009, a cantora com menos de 30 anos de idade mais rica do mundo, por ela arrecadar mais de 87 milhões de dólares entre os anos de 2008 e 2009.

Mas não pense você que eu esteja a dissertar a respeito de Beyoncé por qualquer um dos motivos acima mencionados. De fato, duas questões em Beyoncé, ou nos processos culturais que a transformam no fetiche que ela representa, têm tomado a minha atenção. A primeira delas se relaciona à sua popularidade junto ao que podemos chamar de “público gay” – sim, porque Beyoncé se constitui como uma “diva!”, no seio da mesma tradição iniciada (?) por Madonna. A segunda, por sua vez, vincula-se ao gosto musical de Dona Maria, trabalhadora brasileira, mãe de seis filhos, moradora do município de Cabedelo, na Paraíba, e que, às segundas-feiras, dá conta da faxina aqui de casa. Dona Maria não conhece Beyoncé – ela gosta mesmo é de Amado Batista! – mas costuma ouvir e cantarolar músicas dessas bandas de forró eletrônico que transbordam das rádios. Ocorre que, ironicamente, foi através de uma dessas bandas, intitulada “Calcinha Preta”, que Dona Maria me apresentou Beyoncé, ou, em verdade, uma versão mal acabada de um dos seus hits, convertida num dos maiores sucessos das periferias e dos interiores da região Nordeste do nosso país. Deu-se, contudo, que, porque conheci o ritmo do single norte-americano antes através da adaptação de Calcinha Preta e não da versão original, ao sair de casa e ir a um bar numa dessas sextas-feiras da vida, e ao ouvir a voz da então desconhecida Beyoncé, alertei, fiat lux, aos presentes: olha a música de Dona Maria!

Como exatamente o mesmo produto cultural se faz suficientemente capaz de atravessar campos tão diversos, como boates gays em todo o mundo e a casa de Dona Maria, diz de um desafio sociológico que estas poucas linhas não possibilitam investigar. De todo modo, interessa-nos o fato de que produtos desse calibre se adaptam, em diferentes conjunturas, sendo localmente reapropriados, o que demonstra a complexa eficiência com que se movimentam as relações entre cultura e capital. Digo isto tomando algumas precauções para que não caiamos equivocadamente num daqueles vícios caquéticos próprios às análises economicistas. Se na conta dos 87 milhões de dólares angariados por Beyoncé está uma cifra cuja responsabilidade compete a Calcinha Preta, não sou capaz de dizer, muito embora saiba que a compra de parte significativa daqueles milhões de álbuns foi realizada por bolsos de homossexuais. No entanto, certamente está nos ouvidos de Dona Maria uma dimensão relevantíssima da legitimação da indústria cultural e de sua produção dominante: no fim, poderão alegar que até nos rincões da Paraíba os ouvem. A cultura e o capital vivenciam um ao outro de uma maneira tal que em certos momentos analíticos torna-se difícil diagnosticar o que mais se multiplica, se os lucros materiais diretos, as cifras, ou os lucros simbólicos da citada legitimação.

Tamanho alcance nos remete à cruel capilaridade com que o capital e a cultura a ele correspondente se incorporam de forma total a este mundo em que vivemos, o que melhor notamos se em discussão está a atividade do consumo. Sim, porque através do consumo, sujeitos socialmente distintos, como o público gay de Beyoncé e as classes subalternas das periferias nordestinas, parecem “integrados”. Mas essa aparência de “integração” por meio do consumo, longe de integrar humanamente pessoas, prática que o modo de produção capitalista estruturalmente impede, reforça as funções do capital na mediação das relações sociais. Engendra-se daí algo que podemos chamar de “integração estranhada”. Beyoncé toca em casas de entretenimento destinadas ao público gay, assim como toca em espaços dedicados ao público hetero, mas as diferentes aglutinações permanecem, gays de um lado, heteros de outro, cada grupo mantendo um nicho de mercado bastante lucrativo e evitando o contato com a “outra” humanidade, por mais que lá e cá pessoas se vistam, dancem, cantem e bebam cada vez mais identicamente.

O cenário produzido pela integração estranhada se torna mais e mais complexo ao  passo em que apuramos o olhar sobre as manobras conduzidas dialeticamente entre capital e cultura. Notamos, por exemplo, que os jovens gays das periferias escutam a um só tempo Beyoncé e Calcinha Preta, o que igualmente acontece com os filhos, gays ou não, das classes medianas. Notamos, consequentemente, que a citada capilaridade do capital e de seus objetos de consumo implica e requer uma divisão cultural do consumo, concernente à má e velha divisão social do trabalho, mas muitíssimo complexa. Isto por conta das diversas combinações possíveis entre objetos de consumo (originais ou adaptados) e públicos consumidores, estes também coisificados. Decerto, nenhum outro momento na história conheceu a totalidade como nós atualmente conhecemos. Os rastros do modo de produção vigente se encontram em tudo, todo o tempo, inclusive em nossa incapacidade de percebê-los. Por outro lado, nunca fomos tão fragmentados, perdidos em umbigos próprios, fronteiras de sala de estar ao redor de aparelhos LCD, celas abarrotadas de homens negros e pobres, esquerdas irreconhecíveis diante de si mesmas.

Porém, disso tudo é quase impossível não concluir que – e aqui está mais uma vez a ironia da qual já falei –  porque não há significativas diferenças entre o “original” e a “adaptação”, afinal ambos não são lá o que existe de mais artisticamente criativo na história, podemos contundentemente afirmar que entre Calcinha Preta e um Grammy, nada mais há que Beyoncé: o eterno retorno do que nunca se foi, a mais nova velha novidade do pedaço. Propunhamos então o Globo de Ouro a Calcinha Preta, por todos os seus esforços, ou melhor, a Dona Maria, porque se é de esforços que estamos a falar, ela vence. Ah, se vence!

*Roberto é Mestre em Direito pela UFPE e professor do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB

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