Entrevistas

| Renan Palmeira - Movimento do Espírito Lilás/Paraíba |


"O machismo e a homofobia andam no mesmo espaço"



Para Renan Palmeira, vice-presidente do Movimento do Espírito Lilás (MEL/Paraíba), os índices alarmantes de assassinatos e outras formas de violência contra homossexuais no estado da Paraíba são resultado tanto da nossa vinculação cultural predominantemente machista quanto dos recentes processos de visibilidade da causa LGBT, que têm desagradado setores conservadores. A luta do Movimento pelo sonho de igualdade significa estabelecer disputas dentro das instituições por proteção legal, políticas públicas e representação contra-majoritária. Ainda, a militância, os trabalhos de conscientização da sociedade e a produção cultural sobre a temática homoafetiva são estratégias irredutíveis de enfrentamento político.


Renan apresentou, em primeira mão, aos editores do Jornal A Margem, o relatório “Homofobia: abordagem dos índices de crimes relacionados ao ódio contra homossexuais no Estado da Paraíba”, produzido pelo MEL em parceria com a OAB/PB, no qual constam informações detalhadas sobre agressões homofóbicas, no ano de 2011, obtidas junto à imprensa e órgãos oficiais.


Por Breno Barros e Douglas Pinheiro


A MARGEM - Você poderia nos dizer qual é o significado do termo “homofobia” para o movimento LGBT?

RENAN - Nós compreendemos que a homofobia é o ódio, o preconceito contra o homossexual. É um preconceito diferenciado de outros preconceitos. Nesse sentido, podemos perceber que as agressões contra homossexuais expressam muito esse ódio, a negação do homossexual, o nojo, a vontade de humilhá-lo. A maioria dos crimes contra homossexuais que estão no relatório evidencia casos de pedrada na cabeça, esmagamento do crânio, facada no reto, agressões que não são típicas de um assassinato comum. Você não só mata, mas também quer banir aquela pessoa da face da terra. No ano passado, aqui em João Pessoa, mataram um indivíduo e ainda arrancaram o pênis dele, colocaram-no na sua boca e fizeram várias cruzes no seu corpo. Houve também o caso de uma lésbica, na cidade de Queimadas, que foi agredida, estuprada e teve seu rosto danificado a pedradas. Realmente há ódio, nojo à figura do homossexual.

A MARGEM - A homofobia se manifesta em outras relações, como no trabalho, por exemplo? Um piada com um homossexual é uma atitude homofóbica?

RENAN – Sim. É uma forma de violência simbólica. A homofobia se coloca em vários patamares. Na escola, por exemplo, há o bullying homofóbico. Eu me considero como alguém que sofreu bullying homofóbico porque muito afeminado enquanto criança: há preconceito através da piada, da agressão, dentro do espaço escolar. Temos também a homofobia institucionalizada, que é advinda do próprio Estado, da dificuldade que o Estado tem de receber o LGBT, de dialogar com o LGBT; que a própria polícia tem de receber uma queixa de agressão homoafetiva. Você tem a homofobia no espaço privado, a homofobia familiar, quando a família descobre que tem um filho homoafetivo e o discrimina. A homofobia consegue se fortalecer também com outros preconceitos. Um exemplo: a mulher lésbica. Ela sofre preconceito por ser lésbica e por ser mulher. Também o LGBT pobre e negro. Essas situações expõem e estimulam o ódio e a homofobia.

A MARGEM - Só neste ano, na Paraíba, já foram registrados 18 casos de assassinatos motivados direta ou indiretamente por homofobia (até a data da entrevista). Você acha que tais crimes são unicamente justificados por nossa construção cultural explicitamente machista, que nega a possibilidade de superação da dicotomia homem-mulher, ou a visibilidade cada vez maior dos movimentos de defesa da causa LGBT também tem contribuído para isso? Há como relacionar uma coisa com a outra?

RENAN - Nós compreendemos que o machismo e a homofobia andam no mesmo espaço. O preconceito contra o homossexual é o preconceito contra a feminilidade do homossexual: ao vê-lo como uma mulher ou compreender que ele possa ter alguma atitude feminina, há uma justificativa da homofobia pelo machismo. O avanço da união homoafetiva; o reconhecimento dessa mesma união pelo Supremo Tribunal Federal; a própria ONU – que, neste ano, deu passos na questão de pensar o combate à homofobia a nível mundial; a participação da OAB; e a abertura da mídia tornaram a causa homossexual muito visível, muito pública. E, nesse sentido, há uma parcela conservadora da população brasileira, que não é a maioria dela, mas é uma parcela significativa, que tem se enfurecido, que tem aumentado o seu preconceito, que tem aumentado o seu poderio de ódio contra essa parcela homossexual. Acredito que estão relacionados sim o machismo e a homofobia. Estão relacionados a visibilidade que nós temos hoje em nível nacional e o fortalecimento e o crescimento do preconceito e do ódio contra os homossexuais. Segundo o Ibope, o Nordeste brasileiro é a região mais homofóbica do Brasil: 46% dos crimes contra a comunidade LGBT que aconteceram nestes últimos anos se deram aqui.

A MARGEM - O deputado Jean Willys (Psol-RJ) esteve aqui na Paraíba, há alguns meses, para tratar, juntamente com a coordenação do MEL, desse problema da violência contra homossexuais. Quais foram os pontos mais relevantes dessa articulação? Está sinalizada alguma estratégia de enfrentamento institucional?

RENAN -  Jean Wyllys é um grande guerreiro, uma grande voz da comunidade LGBT, uma pessoa extremamente capacitada, maravilhosa. Ele tem feito um trabalho muito sério na Câmara Federal, na perspectiva de combater a homofobia, de pensar políticas públicas. Eu tenho acompanhado o mandato dele e observo que o grande entrave ao avanço da cidadania LGBT é a composição da Câmara: você tem setores extremamente conservadores, setores de fundamentalistas religiosos que não estão dispostos a dialogar com o movimento LGBT e nem aceitar a pauta LGBT. Quando Jean esteve aqui na Paraíba, nos reunimos com ele e apresentamos esse relatório. Ele está buscando levar esses 18 assassinatos – que aconteceram em João Pessoa, Campina Grande, Cabedelo, Santa Rita, Bananeiras, Sousa, Patos e Queimadas – para a Comissão Nacional de Direitos Humanos da Câmara, como forma de propagandear, de divulgar esses números e de cobrar políticas públicas do estado da Paraíba no combate à homofobia. Jean deixou muito claro que, se o estado brasileiro não se movimentar e não criar leis e políticas públicas que possam proteger os LGBTs, ele está disposto a levar esses assassinatos a cortes internacionais.

A MARGEM - Como você avalia as políticas públicas LGBT no Brasil e, particularmente, no nosso Estado?

RENAN - Na Paraíba, eu observo que o trato tem sido extremamente pequeno, mínimo. Nós temos hoje dois serviços funcionando na capital, que são a Delegacia Especializada em Crimes Homofóbicos (uma delegacia regional que funciona com várias limitações) e um Centro de Referência que funciona sem muitos recursos para conceder alimentação e estrutura a um LGBT em estado de carência. O que eu percebo é que há várias cidades no interior da Paraíba que não têm políticas públicas para os LGBTs. Ocupamos hoje o primeiro lugar da federação em crimes homofóbicos e não temos, no estado da Paraíba, nenhuma ação efetiva para combater a homofobia. Isso é algo extremamente sério. Eu não vejo, a longo prazo, iniciativas e articulações para produzir uma política pública de combate à homofobia no nosso estado.

A MARGEM - Analisando a recente decisão do STF que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo e as crescentes dificuldades de aprovação do PLC 122 (que criminaliza a homofobia), você acha que o reconhecimento de direitos dos homossexuais tende a ser cada vez mais judicializado?

RENAN - Nós percebemos, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que ele é um grande aliado para o avanço da cidadania LGBT. Percebemos também que a Câmara Federal e o Senado não têm avançado na perspectiva de pensar as minorias sociais e, aí, nós temos nos apoiado muito no Supremo, nas decisões judiciais. É necessário compreender que a Câmara Federal e o Senado têm que se renovar na perspectiva de ter representantes de minorias sociais que possam pensar o diálogo das minorias com as maiorias, que possam pensar em leis para essas minorias, que possam pensar em políticas públicas para essas minorias. Eu não vejo hoje a Câmara Federal nem o Senado brasileiro como aliados para a conquista da cidadania LGBT.

A MARGEM - A comunidade LGBT tem sido alvo permanente de muitas instituições religiosas, tipicamente defensoras da ideologia da moralidade e preservação dos “bons costumes”. Na sua opinião, há como conciliar liberdade sexual com liberdade de expressão religiosa?

RENAN - Sim. Nós defendemos um estado livre para você vivenciar sua religiosidade da forma como quer, um estado livre para você vivenciar sua sexualidade da forma como quer. Eu acho que nós defendemos um Estado laico e pensar um estado laico é pensar um estado livre. Meu companheiro é evangélico, vai à igreja e nós vivemos muito bem assim. Da mesma forma que eu defendo a liberdade religiosa, no mesmo patamar, na mesma essência, eu defendo a livre orientação sexual, nem um grau a menos, nem um grau a mais. Então, nós queremos construir esse estado laico, onde as minorias e maiorias sociais são respeitadas, onde há diálogo entre elas.

A MARGEM - Como você avalia o papel da mídia na defesa (ou prejuízo) da causa LGBT?

RENAN - Nós avançamos muito. A mídia brasileira, até a década passada, apresentava os LGBTs de forma muito estereotipada: a “Vera Verão”, o tipo mais “bicha louca”, o tipo mais afeminado. Tudo isso era muito ligado ao humor, ao cômico. No início da década de 1990, a discussão sobre o tema passou a entrar de uma forma muito lenta nas telenovelas, a exemplo de “A próxima vítima” (com um casal de gays que foram agredidos na rua) e “Torre de Babel”. Eu avalio que ainda temos muito o que avançar na discussão da mídia, primeiro porque aparecem basicamente dois modelos de gays, que são o mais afeminado, ou o gay tipo Brad Pitt: bonito, másculo, rico, que não anda de ônibus, que só anda de carro. Dentro da comunidade LGBT, você tem uma diversidade de pessoas, de identidades, que em alguns momentos que não são representados pela mídia. A Rede Globo, nestes últimos anos, tem avançado muito na discussão, principalmente nas suas telenovelas, das representações do gay, mas sabemos que a classe artística tem vários LGBTs que têm uma identidade homoafetiva e que não a assumem publicamente por recomendação da grande mídia.

A MARGEM – Como você recebe as críticas que se fazem às paradas gays no sentido de dizer que elas se tornaram eventos comerciais?

RENAN - Concordo com essa crítica. Temos um mercado LGBT que é extremamente lucrativo e um público LGBT que é extremamente consumidor, um público pink que se veste bem, que compra. O capitalismo viu nisso um mercado promissor. Realmente as paradas nacionais e internacionais se tornaram um atrativo financeiro, um atrativo de poder aquisitivo, e perderam um pouco o seu tom político. Nesse sentido, nós, na Paraíba, sempre procuramos fazer uma parada mais politizada. Eu acho que a Paraíba ainda não tem esse foco no mercado LGBT: as empresas daqui não dialogam tanto com essa possibilidade e nós procuramos preservar o referencial político. No mês de março, organizamos também a caminhada LGBT, que é uma coisa mais para “militante”. Apesar das críticas, é importante que as paradas permaneçam, é importante juntar dois, três milhões de pessoas nas ruas de São Paulo, por exemplo.

A MARGEM – Você tem a intenção de escrever um livro em que relata sua experiência de bullying homofóbico na escola. Como está essa ideia? Tem algum livro que você recomenda que aborda a causa LGBT?

RENAN - A proposta está em pé. Eu estou escrevendo o livro, porém, com a correria da militância, a correria do trabalho, ele não tem ficado em primeiro plano, mas pretendo lançá-lo no próximo ano. O título do livro é “Aprendendo a se defender”. Fala sobre os vários meninos que têm trejeitos ou uma aparência homoafetiva na escola e que, quando recorrem à diretora ou à professora para pedir proteção, ouvem: “aprenda a se defender”. Vai retratar esse preconceito na escola, que é um preconceito brutal, muito forte. Na França, por exemplo, a cada três suicídios de adolescentes, dois são de LGBTs. A causa é o preconceito.

No Brasil, a produção sobre a temática LGBT é extrema. Nós temos gráficas e editoras que trabalham só com literatura LGBT, a exemplo de “O terceiro travesseiro”, que eu li quando estava no início da descoberta de minha identidade homossexual, um livro que conta o relacionamento entre dois meninos. Nós também temos uma produção de filmes imensa. A própria Paraíba tem sido cenário dessas produções, a exemplo de “Amanda e Monick”, de André da Costa, que trabalhou com duas transsexuais no interior do estado. Há também “O diário de Márcia”, de Bertrand Lira, o diário da vida de uma transsexual na Paraíba. Em nível nacional, você tem filmes belos como “Eu não quero voltar sozinho”, que narra a história de um menino portador de deficiência visual, que sofre preconceito, é homossexual e descobre um amor. “Cazuza” e “Madame Satã” foram também filmes pioneiros na última década. O próprio Ney Matogrosso está autuando em alguns filmes, representando um LGBT na terceira idade, se mostrando como LGBT já com 60 anos. Enfim, há vários documentários interessantes com LGBTs no Brasil. ●



|Professor Venício Lima |


A liberdade de expressão no Brasil é só a liberdade de uns poucos grupos

O professor Venício Lima, um dos maiores estudiosos do direito à comunicação no Brasil, fala, entre outros temas, sobre o escândalo do “caso Murdoch”, na Inglaterra, e a necessidade de criação de um marco regulatório para a mídia nacional.


Por Douglas Pinheiro e Breno Barros. Gostaríamos de agradecer a professora Renata Rolim (UFPB) por ter viabilizado esta entrevista.


A Margem - O senhor poderia explicar rapidamente qual é a importância do direito à comunicação numa sociedade democrática e como ele se relaciona às liberdades de expressão e de imprensa?

Venício - Eu considero que a principal importância do direito à comunicação é recuperar o sujeito do direito, que é a pessoa, o cidadão. O que eu verifico que tem acontecido é que os conceitos de liberdade de expressão, direito à informação e liberdade de impressa, que estão abarcados na ideia de direito à comunicação, em geral são apropriados pelos controladores da grande mídia, da mídia tradicional, que reivindicam para si mesmos essas liberdades, esses direitos. Isso fica muito claro quando a gente vê a discussão sobre a liberdade de imprensa, que foi interpretada de forma completamente equivocada pelo Supremo Tribunal Federal no acórdão que julgou inconstitucional a Lei de Imprensa. O ministro Carlos Ayres Brito, relator da ação, estabeleceu, inclusive, uma hierarquia de direitos, dizendo que a liberdade de imprensa está acima da liberdade individual de expressão, o que me parece totalmente absurdo.
Eu acho que o conceito de direito à comunicação contempla a necessidade de que esse seja um direito que inclua o direito de ser informado, de informar-se e o direito à informação. Assim, recupera-se a centralidade da pessoa, do cidadão, como sujeito do direito, o que tem sido deslocado, sobretudo, para as empresas que controlam a grande mídia.

A Margem - Qual a opinião do senhor sobre a decisão do STF que dispensou a exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista? A liberdade de expressão ganhou com isso?

Venício - Eu sou contrário à exclusividade do exercício da profissão de jornalista por aqueles que têm o diploma. Isso não significa que eu seja contrário ou que compreenda o exercício constitucional do jornalismo como um exercício que não precise de formação universitária: as exigências do campo da comunicação cada vez mais demandam um profissional bem preparado. Eu acho, inclusive, que a graduação é insuficiente. Na Inglaterra, por exemplo, é comum que profissionais que trabalham em jornalismo econômico façam ou tenham um mestrado nessa área, mas não necessariamente a graduação em jornalismo. Outra coisa é que, ao contrário da decisão do Supremo Tribunal Federal, e do próprio voto do relator – o ministro Gilmar Mendes –, que foi acompanhado pela maioria, a exigência de diploma para o exercício da profissão não traz qualquer drama para a liberdade de expressão, até porque quem não é jornalista profissional tem formas variadas de acesso à grande mídia.
O que eu acho que prejudica a liberdade de expressão é exatamente essa contradição brasileira, que eu mencionei antes, dos pólos da grande mídia, dos controladores da grande mídia – seja ela impressa ou de radiodifusão – que impedem a voz da grande maioria dos brasileiros. Esse sim é o problema da liberdade de expressão: a liberdade de expressão, no Brasil, é só a liberdade de uns poucos grupos. Mas acho também que as novas tecnologias de comunicação estão tornando essa discussão um pouco obsoleta, porque há, hoje, formas tecnológicas de acesso, por exemplo, a blogs e sites de informação que não necessariamente são administrados por jornalistas. É claro que surge o problema da credibilidade, mas acho que estamos vivendo um momento de transformação tão profundo nesse campo, e em uma velocidade tão grande, que me parece um equívoco, inclusive da luta sindical, centrar as discussões exclusivamente na questão do diploma.

A Margem - O recente escândalo envolvendo o “caso Murdoch” reascendeu os debates sobre regulação da mídia. Os grandes órgãos de imprensa do Brasil têm reiterado o discurso de que um controle interno, exercido pelos seus próprios representantes, é mais do que suficiente. Quais os prós e contras de uma proposição dessa natureza para uma teoria democrática das comunicações?

Venício - Acho que devemos estabelecer uma diferença básica quando se fala de regulação. Nós, no Brasil, não temos regulação no mercado de mídia, e isso não tem nada a ver com conteúdo. Se você observar a história da nossa mídia, perceberá que ela se constrói através da propriedade privada ou cruzada. Portanto, a mídia brasileira foi sempre concentrada, historicamente vinculada às oligarquias políticas regionais ou locais. Nós temos “um vício de origem” da própria construção do espaço midiático. Então, quando se fala em regulação, primeiro – e acima de tudo -, a gente se refere a uma norma constitucional que impede os monopólios e oligopólios na área, ou que impede os monopólios e oligopólios em qualquer outra atividade econômica. Isso deveria ser cuidado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), do Ministério da Justiça: a questão de, primeiro, regular o mercado, de garantir que haja competição no mercado.
O segundo ponto é que existem várias previsões legais na Constituição Federal – e, aqui, eu penso, sobretudo, no art. 221 – que têm indicações para a produção de conteúdo, a exemplo da regionalização da produção cultural, artística e jornalística; da preferência por conteúdo educacional; da preferência pela produção independente... Essas coisas vão além da regulação do mercado, mas esta tem implicação direta no conteúdo, e isso não é apenas no Brasil.
Apesar de a Constituição já ter mais de 22 anos, o art. 221 ainda não foi regulamentado e os projetos que regulamentam todos os seus incisos estão parados no Congresso Nacional. Não tenho nada contra a autorregulamentação: que se faça! Aliás, se se fizer a autorregulamentação de alguma coisa no Brasil, nós já estamos atrasados há quase 100 anos, mas ela não é suficiente. Há dezenas de estudos que mostram que a autorregulamentação funciona como complemento da regulação do Estado. O que acontece no Brasil, de forma muito clara, é que a nossa grande mídia, além de protetora dos seus próprios interesses, do ponto de vista ideológico e doutrinário, ainda toma a posição de um liberalismo clássico que enxerga a liberdade apenas como uma liberdade negativa e identifica a restrição de liberdade como vindo sempre de um adversário principal, que é o Estado. Então, qualquer tentativa de controle, por mais que esteja ligada ao liberalismo atualizado, moderno, em prática em outros estados democráticos, ainda é vista, aqui no Brasil, como forma de censura.
O que aconteceu na Inglaterra - que é o berço conceitual da ideia de liberdade de expressão e, num certo sentido, da liberdade de imprensa - deixou muito claro que a autorregulamentação não é suficiente; é preciso que haja a interferência do Estado para a manutenção das liberdades individuais.

A Margem - O que o senhor acha do avanço dos setores religiosos nos meios de comunicação? Essa pode ser uma nova face do coronelismo eletrônico?

Venício - Há algum tempo, participei de uma banca de avaliação da tese de doutorado de um aluno que depois descobri ser também pastor de uma igreja evangélica. O argumento principal dele é que a sobrevivência dessas novas igrejas dependente fundamentalmente do seu acesso à grande mídia. Passou a ser fundamental que elas tenham representação no Congresso Nacional, sobretudo para garantir esse espaço na grande mídia. Ele mostra que há discordância dos representantes dessas igrejas em relação a vários temas, a exemplo do aborto e da união homoafetiva, mas, no que se refere à preservação de certos pontos da regulação ou da ausência de regulação no setor de mídia, eles agem em bloco porque estão protegendo algo que faz parte da sobrevivência da sua própria igreja. Isso representa não só o desvirtuamento do processo democrático no Congresso (porque vivemos num Estado laico), mas também um desvirtuamento doutrinário do ponto de vista religioso.
Há, aí, uma contradição interessante porque a lei das rádios comunitárias, desde 1998, impede, de forma explícita, o proselitismo religioso e político. No entanto, isso não se aplica à radiodifusão comercial: hoje é uma prática comum que concessionárias de serviços públicos subloquem, para igrejas, espaços da concessão, com fins exclusivamente lucrativos. Eu vejo isso com muita apreensão.

A Margem - Somos testemunhas de um Conselho de Comunicação Social que não funciona, uma mídia sem regulação, monopólios, oligopólios, propriedades cruzadas, parlamentares proprietários de empresas de radiodifusão (tudo isso proibido pela Constituição Federal) e um processo massivo de criminalização das mídias comunitárias. Há o que se comemorar em matéria de direito à comunicação no Brasil?

Venício - Eu estou convencido de que nós estamos avançando em relação à consciência da importância da questão da comunicação na sociedade contemporânea. Temos debates sobre esse tema instalados não só em algumas Universidades; ele está também permeando o debate na agenda pública, sobretudo no que diz respeito ao grande boicote sistemático que a mídia faz quanto a essas discussões: a grande mídia não discute sobre ela mesma...
Hoje recebo convites para participar de debates nessa área, sobretudo de sindicatos e frentes pela democratização da comunicação, conferências regionais de comunicação, etc. Eu considero que o principal resultado da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) foi esse de colocar a comunicação na agenda pública dos debates. E, aos poucos, alguns resultados aparecem: várias Constituições Estaduais, quando adaptando modificações que aconteceram na Constituição Federal, incluíram, nos seus textos, capítulos sobre comunicação e, a exemplo do que está na CF, a criação de Conselhos Estaduais de Comunicação. Eu fiz uma pesquisa e constatei que dez Constituições Estaduais (mais a do Distrito Federal, que é lei orgânica) prevêem a criação desses Conselhos. A Bahia já criou o seu, que está em processo de instalação. Isso é resultado de uma ampla mobilização da sociedade civil e dos movimentos sociais baianos, que fizeram uma conferência estadual de comunicação mesmo antes da convocação da conferência nacional.
Criando um Conselho Estadual de Comunicação, mesmo que este não tenha poder deliberativo, há democratização, há avanços na participação popular; caminha-se no sentido de que mais gente participe do debate sobre essas questões e influencia-se na formação das políticas estaduais de comunicação, a exemplo do plano estadual de comunicação, da distribuição de verbas públicas publicitárias para os veículos, etc. O que nós temos a comemorar é isto: o avanço da consciência acerca da importância desse direito.
  
A Margem - O senhor acha que a população tem desenvolvido um posicionamento mais crítico em relação àquilo que ouve, vê e lê, ou a mídia ainda é a tutora inquestionável da opinião pública?

Venício  - Essas coisas estão mudando muito. A internet está provocando o deslocamento dos formadores de opinião tradicionais, que estão perdendo poder. Tudo isso está sendo mais horizontalizado. O que ainda me assusta muito – e eu andei pensando nisso em relação ao caso Murdoch, na Inglaterra – é que a grande mídia ainda continua a ter muito poder no que se refere à vida privada. Você invade um espaço do direito individual, principalmente a reputação, a imagem do indivíduo. O poder da mídia tradicional continua devastador. E os danos provenientes disso não têm conserto. A nossa mídia não trabalha com a presunção de inocência (uma norma constitucional); a mídia brasileira trabalha com a presunção de culpa. E, muitas vezes, erra, e erra feio.

 |Professor Menelick de Carvalho|


"Um dos Congressos mais conservadores elaborou nossa Constituição mais progressista"


Por Caroline Carvalho, Magno Duran, Pedro Ataíde, Yulgan Tenno e Yure Tenno


Menelick de Carvalho Netto é doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor associado da Universidade de Brasília. Possui diversas publicações nas áreas da Filosofia Jurídica, Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito. Para ele, por trás das dinâmicas institucionais e do texto da lei, há muito espaço para dialogar acerca da filosofia e da historicidade das ideias.


No final do ano de 2010 Menelick esteve em João Pessoa, quando participou do Seminário Crime e Violência no Brasil Contemporâneo, promovido pelo Diretório Acadêmico Tarcísio Burity, do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. Confiram entrevista exclusiva concedida à equipe do jornal A Margem naquela oportunidade.

A Margem – Qual foi a importância da participação popular para a construção da nossa Constituição?

Menelick – Isso nos leva a dois tipos de reflexão. É claro que, no processo de transição para a democracia, o Brasil se encontrava diante de uma ruptura com a ordem autoritária e não propriamente um processo de reforma da ditadura, mas o ato de convocação de uma Assembleia Constituinte foi o pior ato possível, o menos adequado, pois ensejou toda essa pretensão de que a Constituinte não poderia ser, de fato, constituinte. Na verdade ela foi uma assembleia revisional, uma assembleia de aprimoramento da própria ditadura: isso é coerente com o fato de que senadores continuavam seus mandatos não tendo sido eleitos, não tendo passado pelo crivo de uma eleição popular para a constituinte, sendo chamados, na época, de “senadores biônicos”. Um dos congressos mais conservadores do Brasil foi o constituinte.

Havia um descontentamento com a ditadura: a anistia tinha sido arrancada, surgiu depois o movimento das “Diretas Já!” – um movimento fortíssimo que brigou por eleições diretas e que não obteve sucesso devido ao controle estatal por parte dessas forças mais retrógadas. Houve um processo de negociação “pelo alto” que garantiu a transição de uma forma bastante leve, dentro da tradição brasileira, sem grandes rupturas, evidenciada pela continuidade dos mesmos personagens. Tancredo Neves assumiu a condição de candidato dessas forças, numa negociação em que José Sarney, civil, mas muito vinculado aos militares do partido ARENA, assumiria então a condição de vice de Tancredo. Isso aconteceu num pleito ferido no Colégio Eleitoral, que representava os interesses da segurança nacional e elegia o presidente da República, os governadores dos Estados e os prefeitos das capitais. O povo brasileiro era considerado imaturo e precisava dessa tutoria. As forças militares comandaram esse processo: o Congresso Nacional era um Congresso cassado, praticamente sem grandes garantias, e que tinha funções menores – não era ele quem estabelecia, por exemplo, os objetivos nacionais permanentes, mas o Conselho de Segurança Nacional. Representantes do “povo imaturo” eram também considerados imaturos e, portanto, tutelados por essa instância, por atos institucionais que se colocavam acima dos constitucionais.

O presidente eleito pelo Conselho de Segurança Nacional e seu vice não chegam a tomar posse. Com a morte de Tancredo Neves há um impasse institucional muito grande: Ulysses Guimarães, presidente do Congresso Nacional, não cumpre sua função constitucional, deixando de assumir a chefia do Executivo. A eleição de Tancredo e Sarney importou também no compromisso de que o próximo presidente seria eleito diretamente. Ocorre então, um golpe de Estado: o vice de quem nunca foi presidente acaba tomando posse e, obviamente, ele não era vice, pois não houve posse. O símbolo da negociação com a ditadura assume a Presidência. A partir daí, forças mobilizadas já há algum tempo acabam desaguando no processo constituinte em curso. A produção da nova Constituição havia sido trilhada, até então, nas sendas da tradição nacional, por uma “comissão de notáveis”, que possuía um projeto pronto e passaria a discuti-lo: a força popular foi tamanha que deslocou todo o processo previamente estabelecido, que passou a ser discutido com participação popular intensa – tudo televisionado, entrando na casa da gente.

A participação popular foi massiva e talvez isso explique o fato de que um dos nossos Congressos mais conservadores tenha elaborado a nossa Constituição mais progressista. Por isso mesmo acredito que a legitimidade da Constituição de 1988 venha de um processo extremamente participativo, democrático, que foi o processo constituinte brasileiro, fazendo com que, pela primeira vez na nossa história, a facção conservadora tivesse nome, telefone e endereço.

A Margem – Qual  o papel da  educação  em  Direitos  Humanos para  a  construção do  ethos  democrático  na  realidade  brasileira?

MenelickNão acho que a educação tenha esse papel todo, pelo menos não a educação como proposta de formação de alguém. Ninguém forma ninguém: eu posso simplesmente lançar oportunidades de autoformação. A própria questão da cidadania nos revela isso: responsabilidades precisam ser assumidas nesse campo e é a auto-responsabilidade que pode construir alguma coisa. Eu posso abrir possibilidades de visão, mas não posso doutrinar ninguém – esse é um paradoxo dos próprios direitos fundamentais: eu aprendo muito mais o custo de violá-los do que efetivamente os ensino, porque eu aprendo praticamente. Como professor de Direito Constitucional, Direitos Fundamentais e Filosofia Política, já enfrentei desafios muito grandes, como ensinar a agentes penitenciários Direitos Humanos, agentes estes que ganhavam pouco, não tinham médico a seu dispor, nem auxílio psicológico. Tivemos que criar um ambiente onde pudéssemos trabalhar o sentido do respeito ao outro, experiência que deu certo.

É preciso trabalhar com a vida, com o momento. Eu não posso ter um curso pronto e prévio para isso, independente das pessoas com as quais eu estou lidando. Isso tem que ser construído, até porque é vivenciado: não acredito numa educação pasteurizada, nos moldes de uma cartilha.

A Margem - Isso se conecta à historicidade dos Direitos Humanos...

Menelick - Os direitos mudam e são vivenciados. São de aplicação imediata aqui e agora. E as dificuldades também: elas são concretas, são muito específicas. Os direitos sempre são universais e concretos. Os dois opostos são constitutivos deles: se eles são universais é porque eles são aqui e agora e muito concretos pra todos nós e não pra outras pessoas. E por isso mesmo é que mudarão no futuro, mas pela vivência concreta.

O STF é o intérprete último da Constituição, pelo menos à primeira vista. Eu não concordo com isso, não acho que seja: a própria discussão sobre as decisões do Supremo constitui uma instância que a academia deve e pode fazer como fiscalização e exercício de cidadania. O nosso STF é uma herança da ditadura, direta, fisicamente falando. Por mais que os membros tenham sido alterados, essa tradição perdura. Moreira Alves foi o ministro mais influente ali e influenciou muitos que são também influentes: o próprio Gilmar Mendes é uma cria direta do Moreira Alves, que era um civilista romanista, com pouca base em Direito Público. Não é o caso do professor Gilmar, de jeito nenhum: certamente ele tem uma boa formação constitucional, embora eu discorde profundamente da orientação dessa formação – que é germânica e muito conservadora dentro da tradição germânica. O problema é que os ministros do STF têm uma postura praticamente autista: cada um diz seu voto e não se discute, o que é péssimo para uma Corte. Não resgatam a própria história das ideias constitucionais.


"Os ministros do STF têm uma postura praticamente autista: cada um diz seu voto e não se discute, o que é péssimo para uma Corte. Não resgatam a própria história das ideias constitucionais"




Michel Resenfeld tem uma reflexão que eu acho muito interessante: “o passado é tão aberto quanto o futuro”. Nós reconstruímos nossa identidade constitucional o tempo inteiro, não só para o futuro mas também em relação ao passado. “Integridade”, no Direito, é exatamente a coerência que eu consigo com as mudanças: obviamente a gente muda de entendimento todo o tempo, mas eu preciso ter uma história do meu passado para compreendê-lo e ter uma melhor luz sobre o presente. E por que eu entendo assim hoje quando se entendeu diferente no passado? Qual é a distância que nos separa desse passado? Essa reflexão eu não encontrei e, portanto, eu não encontro a construção de uma “Constituição viva” para nós: isso ainda é um déficit de legitimidade muito grande. Acho que o ministro Gilmar Mendes tem total razão quando argumenta, no problema da Ficha Limpa, por exemplo, que o papel do tribunal é um papel contramajoritário, de garantia de direitos de minorias contra maiorias eventuais. Não pode haver um egoísmo anterior à vida social que eu acho que é “direito”. Eu não tenho como defender publicamente essa pretensão abusiva que estou chamando de direito, como por exemplo, o “direito” a não prestar contas de um mandato público sobre o qual incide sérias dúvidas. Obviamente eu não tenho o direito de renunciar para evitar a prestação de contas de algo que eu já devo. Os direitos fundamentais nos sustentam; o papel deles é esse: tornar tradições inviáveis e, portanto, eu não posso me remeter a uma tradição que se tornou claramente abusiva, claramente antirepublicana, antidemocrática... e aí não há retorno possível de defesa num debate público. Há pretensões abusivas de direito que os tribunais acolheram tempos atrás e que hoje não são mais possíveis.

A Margem – Quais são as principais razões que o senhor poderia apontar para a crescente judicialização da política e dos grandes temas do país?

Menelick É claro que há problemas de judicialização da política, mas há um fenômeno que expande o Direito como um todo, que é o próprio constitucionalismo e a noção que a gente tem de direitos fundamentais: essa tem se ampliado e se tornado cada vez mais complexa. Ao lado disso, temos um processo institucional de aprendizado acerca do princípio de separação dos poderes. Nós acreditamos, no início, na primeira experiência constitucional, que o Legislativo era o poder central. Aprendemos, a duras penas, que ele não o era. No segundo modelo constitucional, o paradigma do Estado Social, aprendemos, a duras penas também,  que o Executivo poderia ser ou deveria ser. Ele executa, leva os programas para frente, muda o sentido da lei, através da transformação na sociedade, que as próprias leis prevêem, incentivam, requerem.

Agora nós vivemos no terceiro capítulo dessa História, no paradigma do Estado Democrático de Direito. Temos certeza de que o centro do sistema jurídico é o Judiciário, que é ele quem tem a última palavra em todas as disputas acerca do sentido disso ou daquilo. Sem dúvida também achamos que os direitos fundamentais só têm sentido se tiverem aplicação imediata, e que, portanto, as cobranças devem ser feitas. O constituinte tomou cuidado ao criar institutos como a ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. A declaração de inconstitucionalidade por omissão foi copiada da Constituição Portuguesa, enquanto que o mandado de injunção foi resultado da injunction norte-americana diante da ausência de lei para garantir determinado direito criado pela Constituição. Mas o que o nosso Supremo Tribunal Federal, composto, há algum tempo, por gente da ditadura, fez de cara? O resultado do mandado de injunção é mandar um bilhete para o Congresso dizendo que este está em débito, ou seja, acaba a funcionalidade do mandado de injunção. Essa questão termina judicializando a política, numa disputa com o Legislativo para legislar acerca de direitos sobre os quais ele não legislou. Em relação ao direito de greve, o Supremo acabou fazendo uma lei de greve, que o legislativo não fez.

Podemos ver que existem dificuldades muito mais complexas do que esse simples termo “judicialização” : a meu ver, ele diz muito pouco se eu não estudar os casos concretos.


|Luiz Couto, deputado federal|

"A maior proteção da qual os defensores de Direitos Humanos precisam é a de não necessitar mais de proteção"


Há, pelo menos, duas formas de se analisar a defesa dos direitos humanos: a dos debates abstratos, que se valem de teorias justificadoras e do jogo interpretativo em prol da dignidade universal (cada qual segundo o gosto de seus debatedores); e o embate real, associado a um contexto de reinvindicações, luta social e, não poucas vezes, violência. Os defensores de Direitos Humanos estão entre os muros das instituições e no meio das ruas; do trabalhador espoliado, mas politicamente consciente, ao Doutor da academia.

O deputado federal Luiz Couto (PT) entende bem o que aquela segunda dimensão significa. Sabe que a defesa material de direitos universais não pode existir sem afrontar, por meio de palavras e ações, os interesses de determinados grupos político-econômicos e que esse tipo de engajamento pode custar caro, sobretudo para quem assume um papel de protagonismo: "um policial civil só desistiu de me matar porque teria que matar policiais federais também", revela Couto à nossa equipe.
Hoje o deputado recebe proteção da Polícia Federal, mas acha que ela é insuficiente. Já denunciou, em CPI's, diversas autoridades políticas e econômicas, além de agentes públicos. É um dos propositores de projeto de lei  federal que prevê a tipificação do crime de extermínio, porque sabe que é dessa prática de eliminação de seres humanos que os agentes violadores se valem para fazerem perpetuar seus interesses. É um defensor de Direitos Humanos e sabe que está marcado para morrer.
Entre grupos de extermínio, federalização de crimes contra os direitos humanos e a análise do Estado brasileiro enquanto violador, Luiz Couto defende que o papel de tutelar direitos cabe a qualquer cidadão e que a garantia de exercício livre dessa defesa também é um direito humano.
Confira, abaixo, as duas partes da entrevista da equipe do Jornal A Margem com o deputado:






|Irandhir Santos, ator|

"Não quero que o filme afaste as pessoas da política, ou que as deixe decepcionadas em relação aos nossos representantes"


Por Caroline Carvalho, Douglas Pinheiro, Magno Duran, Sarah Marques e Yulgan Tenno
Entrevista realizada em 8/11/2010

O filme Tropa de Elite 2, no fim das contas, é a favor ou contra os direitos humanos?

Irandhir - Desde que eu li o roteiro do segundo filme, me senti motivado a fazê-lo, porque eu senti que o Padilha (diretor) acabou acrescentando o que, no primeiro, a meu ver, faltou, que é um diálogo entre aqueles que imprimem a força e as armas para a resolução de determinados problemas, de um lado, e, do outro, alguém que vem pra discutir, questionar. Em Tropa de Elite 2, quando eu li o roteiro e recebi o convite, do próprio Padilha, para fazer o Fraga, percebi, nesse personagem, a possibilidade do diálogo, mas, desde já, eu sabia que não seria um trabalho fácil porque as figuras do Capitão Nascimento e do BOPE, de alguma forma, se personificaram como grandes forças heróicas para a resolução dos problemas. Então, como dialogar com essas forças? E isso foi o começo de uma caminhada dura, porque eu aceitei o convite e disse para o Padilha: “Vamos modificar algumas coisas do roteiro, porque eu acho que é preciso que se diga NÃO a muita coisa e é preciso que o outro lado escute também”.
Eu percebo que a repercussão do filme Tropa de Elite 2 surgiu como a concretização do que é o mito “Nascimento”. E o Nascimento é um policial que representa o BOPE e a resolução pela força, a resolução pelas armas, a resolução daqueles que sobem no morro pra matar. Então, quando se fala sobre direitos humanos nesse filme, eu digo que ainda está muito aquém de se ter os direitos humanos como resolução, de haver o respeito em relação àqueles que lutam por esses direitos.
Quando Tropa de Elite 1 foi lançado, o Padilha pretendia, com aquilo, criticar o BOPE, mas o tiro saiu pela culatra em relação ao público brasileiro. O número de pessoas inscritas no BOPE, depois da exibição de Tropa de Elite 1, quadruplicou. As pessoas começaram a querer entrar no BOPE, então, onde é que está a crítica nisso? Era a intenção dele? Claro que não!: a intenção do Padilha era trazer a crítica. A questão é que, se você tem uma obra dessas nas mãos, é preciso ter cuidado com o público a que se vai oferecê-la e com a maneira como se oferece.

Qual a mensagem que o personagem Fraga quer passar ao público e como ele interfere ou contribui para o processo de amadurecimento do Coronel Nascimento?

Irandhir - Eu tinha muito receio em relação a esse personagem porque, quando eu escutava a maneira como o Capitão Nascimento se referia a ele, temia que ele saísse como o “engraçadinho”, o “babaca” da história, traduzindo aquela visão deturpada que a maioria das pessoas tem em relação aos direitos humanos (“direitos de bandidos”). E eu acho que a ideia era fazer o Fraga o mais sério e íntegro possível para que não desse margem a nenhum tipo de interpretação diferente. Então foi muito bem lapidado o roteiro em relação a isso, de substituir palavras que não soavam bem, coisas pequenas, mas que seriam significantes no final, do tipo “o cara dos direitos humanos já chegou lá?”, no lugar de “o babaca dos direitos humanos”. A nossa pretensão era que, ao final do filme, as pessoas aprovassem, ainda que minimamente, o personagem, que olhassem e dissessem “não, o cara tem uma visão diferente do meu herói, que é o Nascimento, mas uma visão que também funciona, que é plausível, que deve ser ouvida”. Fátima Toledo (nossa preparadora de elenco), no primeiro exercício que eu fiz com o Wagner Moura, nos colocou frente a frente e disse “agora falem um para o outro tudo o que vocês precisam falar”. E uma coisa muito curiosa que aconteceu é que o Wagner estava tapando a única luz do espaço, então eu via só a sombra dele e, por essa questão, comecei a dizer que ele era uma pessoa que “só trazia sombra”, que a luz não passava por ele. Até que cheguei ao momento de dizer “você só enxerga o que tem na frente da sua mira. Por que você não enxerga o outro lado, o lado de quem está por trás dessa mira?”.
Depois do exercício, ele veio me dizer: “Irandhir, acho que a gente achou um caminho que pode oferecer pro roteiro, que é o olhar do Nascimento em relação ao que tem por trás dele, a quem o comanda”. Daí todo o discurso dele, no filme, sobre a questão do “sistema”, de ele se perceber no meio de algo que é muito maior do que imaginava e como alguém que está sendo usado por aquele sistemaA influência do Fraga já existe antes mesmo da primeira cena do filme, com experiências como essa. Mas o filme, sem dúvida, é do Capitão Nascimento.

Em sua concepção, por que o discurso da violação e da repressão tem mais legitimidade nos lugares nos quais as pessoas mais sofrem com a violência?

Irandhir - Não é a toa que esse discurso se dá nesses lugares. Eu acho que, resumindo, isso é “criminalização”, não tem outra palavra. O que se faz com essas pessoas que não servem mais ao capitalismo? Se escanteia, se coloca “atrás do muro”. Se você for hoje à cidade do Rio de Janeiro, há algo impressionante, pois, ao sair do aeroporto para ter acesso ao centro da cidade, você passa por diversas comunidades... Sabe o que eles [os administradores públicos] estão fazendo agora? Estão levantando um muro, e a desculpa é que isso é para “protegê-los do som dos carros que entra nas casas”. É isso: se escanteia, se coloca atrás do muro, criminaliza, prende e mata. Não tem outro jeito. É isso o que eles pensam e é isso o que eles fazem. Para quê o BOPE, se não para isso? É pura arma. Nesse exercício que eu fiz com Wagner Moura [o das sombras], disse: “eu não estou vendo uma pessoa, estou vendo uma arma; você é uma arma. Eu posso desarmar você aqui agora”. O BOPE é isso: uma arma a favor dessa ideologia da criminalização. Eles dizem que o perigo está no morro. Então, sobem no morro e matam, sobem no morro e prendem.
Para mim, é muito visível, mas a maneira como eles fazem - deturpar para justificar a violência - é impressionante. Criminalizar essas pessoas, para mim, é questão de classe, não tem outra resposta. Uma pesquisa realizada pelo PSOL do Rio de Janeiro mostrou que, nos morros, os realmente envolvidos com o tráfico de drogas representam apenas 1% da população das comunidades. Então, quando você se refere ao morro, você não pode se referir a todos como traficantes, porque 99% descem o morro para ir trabalhar.

Qual a lição que o filme pode dar aos brasileiros?

Irandhir - Para quem faz cinema, o filme Tropa de Elite 2 é um exemplo interessante do que se pode conseguir juntando arte e entretenimento. O resultado é uma obra que concede uma reflexão do tema tratado e fundamenta grandes debates a respeito. O que espero é que, da tela, saiam elementos que possam vir a ser analisados e debatidos, como as questões da polícia, da política, do crime - elementos que afloram no filme e que possuem ligação com os elementos do dia-dia.
Não quero que o filme afaste as pessoas da política, ou que as deixe decepcionadas em relação aos nossos representantes, por isso tive a preocupação de frisar a trajetória limpa do “Fraga”, para que existisse a realidade de um político honesto, com o intuito de não causar o tipo de efeito “todos são corruptos”. O que eu quero é que esse filme dê margem à produção cultural e acadêmica, que as pessoas escrevam sobre, falem sobre, discutam sobre; que cause certo tipo de “agito”, que é o que eu acho que todo bom filme deve provocar. ■

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